terça-feira, junho 23, 2009

domingo, junho 21, 2009

antropofágicas II




Fiz uma pequena, mas necessária correção na mensagem anterior: os tupinambás não eram canibais. Na acepção restrita do termo, canibal é quem come carne humana para se alimentar, mas os tupinambás apenas comiam seus inimigos "por vingança", para absorver sua força e coragem, portanto apenas daqueles nobres e corajosos. Um prisioneiro que não se comportasse com coragem e bravura tornava-se imediatamente descartado, assim como miserável — o que lembra, guardada as distâncias, a areté grega, ou aquilo que dela exemplifica o dilema de Aquiles: 

Pés-de-prata, a deusa Tétis, madre,
me avisou: um destino dúplice fadou-me
à morte como termo. Fico e luto em Tróia:
não haverá retorno para mim, só Glória
eterna; volto ao lar, à cara terra pátria:
perco essa glória excelsa...
(Ilíada, trad. de Trajano Vieira)

Para quem se interessa pelo assunto, aconselho a leitura de um curto texto de Manuela Carneiro da Cunha, "Imagens de índios do Brasil: o século XVI" (in PIZARRO, Ana [org]. América Latina. Palavra, literatura e cultura. Vol.I, São Paulo: Memorial / Campinas: Unicamp, 1993). Como diz Manuela, a diferença foi fundamental para a exaltação do índio brasileiro, antes das duas palavras tornarem-se sinônimas ("segundo Michèle Duchet [...], a sinonímia entre canibais e antropófagos vulgariza-se a partir de Montaigne. Mesmo depois de assimiladas as duas palavras, porém, a diferença que encerravam permanece, com a mesma conotação moral"). Os responsáveis pelo jornal O Dia seriam certamente descartados, indignos de servirem ao banquete antropofágico. A matéria deles, falando de "tortura", é de uma estupidez tamanha (e a Folha de São Paulo, quem diria, que também noticiou o fato, falou em empalhamento!). E que se dê os devidos créditos à famosa gravura. Segundo Manuela, as gravuras de Theodor De Bry foram feitas para ilustrar a edição de 1592 da terceira parte da Coleção de Grandes Viagens, reunindo os livros de Hans Staden (Duas viagens ao Brasil, de 1557) e de Jean de Léry (Viagem à terra do Brasil, de 1578).

terça-feira, junho 16, 2009

antropofágicas

® Theodore de Bry, 1540

Estamos no ano 455 da deglutição do bispo Sardinha, e ainda temos muito que involuir até chegarmos ao estágio em que os conflitos mudarão a mentalidade messiânica colonizada da nossa corte caraíba. A secretaria de educação do município do Rio, ao invés de resolver as diversas pendências que tem para remediar o estado caótico da educação dos nossos curumins, resolve fazer eco ao conservadorismo paulista e encontra algo para censurar aqui também nos textos didáticos. E escolheu essa gravura aí de cima. Pelo que entendi, foi a mídia, e o jornal O Dia em particular, que fez sensacionalismo a partir da reação de uma mãe indignada. As mães indignadas são sempre uma força a não menosprezar. Elas temem a potência mimética dos seus filhos, e é normal que, impotentes para conter o avanço das tropas de elite e da cretinização geral do planeta, tentem ao menos evitar que eles tenham a infeliz idéia de imitar esta "chocante" cena tupinambá! Ao que eu responderia o seguinte: cara Hirlene, prezadas mães, não pensem que faço pouco caso do zelo materno. O problema é que, se seus filhos de 9 anos não têm discernimento para não imitar a cena da gravura, não será poupando-os de sua exibição que vocês conseguirão evitar que eles façam experiências semelhantes! Muito pelo contrário, eu diria. Mais ainda, levem em consideração a hipótese de que o "horror" perante a gravura tem pouco a ver com seus filhos, mas tem antes muito a ver com vocês mesmas, com a condição das mulheres e mães católicas apostólicas romanas desse nosso patriarcado violento e machista. Afinal, o que aquelas índias estão fazendo? Por que elas estão enfiando um bastão no cú do índio e cortando suas costas? Não foi das costelas de Adão que Deus fez a mulher? Trata-se apenas de uma imagem excessivamente grotesca para ilustrar a antropofagia tupi? Ou de uma imagem cuja simbologia abala uma série de ilusões necessárias, sobre nossa natureza civilizada, a docilidade e subordinação da mulher, etc...? De todo modo, é preciso resistir a essa onda conservadora! Senão, em breve, os textos didáticos das crianças só terão personagens da Disney como ilustração!