quarta-feira, março 26, 2008

ela, a pantera




"Em Cat People a heroína, Simone Simon, está sempre voltando para ver a pantera na jaula. Desde a primeira cena em que ela desenha diante da jaula, sabemos que é ela a pantera. Ela é suave e sinuosa. O herói se enamora, não por ela, mas pela sua felinidade. É este princípio o que o envolve e o que envolve o filme nas sombras. Quando a rival da heroína sente-se seguida, ela não vê nada. É apenas a sombra que a persegue entre as folhas que se mexem. Quando a rival mergulha numa piscina, o ambiente está envolto em sombras. Não se vê a pantera, mas se ouvem os rugidos em volta. A heroína se esgueira por entre as sombras como na floresta, rapidamente entrevista por entre as árvores. Se a pantera é uma metáfora, ela é ambígua, pois tanto pode ser da voracidade quanto da sedução. Ela é fascinadora justamente por ser perigosa. Temos aqui uma ambivalência básica, pois subterraneamente se identifica a ferocidade com o fascínio da beleza feminina. Mas ela não quer ser feroz. Se ataca os outros, ela o faz porque isso é da sua natureza. E no fim de tudo realmente nos seduz, pois todos nos identificamos com a solidão da fera, que não ataca por maldade, mas porque deve."

Sebastião Uchoa Leite. Obra em dobras.

domingo, março 23, 2008

redescobrindo Deus




Como hoje é domingo de Páscoa (embora eu não saiba bem o que isso significa, ateu que sou), um texto sobre a redescoberta de Deus com uma pequena ajuda dos bootleggers:

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O que significa compartilhar? Partilha-se sempre alguma coisa com alguém. Na internet, é certo, partilha-se quase qualquer coisa com não importa quem; embora muitas vezes tenhamos a impressão de estarmos absolutamente sós. (É um "chavão" que abre porta grande: a modernidade marcada pela tensão entre a solidão e a desenvoltura do flâneur, etc.; pelo consumo e fazer da arte, hoje como ontem, atravessados pela abrupta disrupção do mercado: a arte ao mesmo tempo simula, tematiza e questiona a utopia de uma praça aberta a todos e ao verdadeiro encontro, mais parecido a um esbarrão sem propósito ou sentido).

Toda essa troca na rede é muito justa, e não apenas porque o cristianismo supostamente condena a venalidade — é óbvio que não deveríamos pagar, por exemplo, para escutar Deus Ele Próprio fazendo um som (sendo Deus Ele Próprio qualquer artista de sua preferência). É justa também porque a indústria do entretenimento (que, não resta dúvida, tem parte com o diabo) é gigantesca mas burra; diversificada, pero no mucho. Hoje, graças à tenacidade de centenas de bootleggers que, de Helsinque à Cidade do Cabo, de Toronto a Ushuaia, passaram grande parte de suas vidas trocando cópias de fitas cassete, VHS e cds de todo tipo por snail mail, temos acesso a momentos divinos, jogados na lata do lixo pelas grandes companhias.

Comparando dois concertos que Bill Evans realizou na Europa, em 1972, Peter Pettinger, por exemplo, escreveu: "That the French performance rather than this one [Hamburg] is available to the record-buying public is emblematic of the vicissitudes of the recording business. For the defenseless artist, the luck of the draw [*] determines which performances are issued posthumously, which remain on tape, which do not survive at all." [**]. No caso de Keith Jarrett (Deus Ele Próprio), the luck of the draw é uma história a ser escrita por mãos abençoadas.

Está na Bíblia que Chick Corea, chegando ao céu, quis proibir a entrada de Keith Jarrett no paraíso, "aquele cara perturbado e mal caráter". São Pedro deu um sorriso maroto e disse "mas é claro, é claro, não se preocupe...". Um belo dia, Corea ouve o som daquele piano inconfundível e, furioso, vai tirar satisfação com São Pedro, ao que este responde: "mas quem está tocando é Ele próprio... Deus!"

Após anos sem escutar Deus, e chegando à heresia maior de considerá-lo inclusive inferior ao Brad Mehldau, mergulhei numa recente e intensa incursão pelo universo jarrettiano, patrocinada pelos bootleggers internáuticos de plantão. Não cheguei a profanar Mehldau em nome de Deus, questão teológica complicadinha. Pode-se até achar que, diante d'Ele, qualquer um é humano, demasiado humano, mas não é todo mundo que, como Mehldau, tem dois cérebros e quatro mãos quando toca piano! Talvez melhor seja adotar o politeísmo, e pronto.

Se você conhece a obra (oficial) de Deus (os franceses pronunciam "queiff jarrrréte"), talvez seu gosto coincida com o meu, por ordem de adoração: Luminessence, The Survivers' Suite e, é claro, o best-seller Köln Concert. Mas isso é porque você não ouviu os concertos solos de Stockholm, de 1972; de Freiburg, de 1973; de Poughkeepsie, de 1975; de Stratford, de 1977... e muitos outros, acessíveis (e de graça) somente nos melhores sites torrents do ramo.

Agora, independente de nossa erudição no assunto, o importante é saber porque afinal Deus é Deus, ou, o que talvez dê no mesmo: o que é essa coisa divina que o Keith Jarrett compartilha quando toca?

(...)

* To have the 'Luck of the draw' is to win something in a competition where the winner is chosen purely by chance
** Peter Pettinger, Bill Evans: How My Heart Sings. Yale University Press 1998, p. 209f.

sexta-feira, março 21, 2008

passage pommeraye




Numa das cenas mais bonitas do cult les parapluies de cherbourg, de jacques demy, surge resplandecente a passage pommeraye de Nantes. Donc, voilá:
http://www.passagepommeraye.fr/