quarta-feira, outubro 20, 2010

epigrama veneziano

« Quanto tempo procurei uma mulher; só achava putas.
Finalmente te apanhei, putinha: aí tive uma mulher »

Goethe
(trad. José Paulo Paes)

metade da história

quando circe seduz ulisses e ulisses com ela se deita, toda a história congela, os companheiros transformados em porcos, penélope esquecida, assediada pelos seus pretendentes.
também psiquê no castelo de eros, cumprindo a profecia do oráculo, percebe que sua maldição, na verdade, é deleite.
quando os mortais os deuses encontram, a ordem do mundo se inverte, o espaço e o tempo diluem-se numa espécie de névoa, de calma e prazer.
prazer ao mesmo tempo humano e divino, que os próprios deuses invejam.

(é certo que aqui eu só contei / metade da história)

segunda-feira, outubro 18, 2010

é sempre bom lembrar...

"Assisti o desnudamento do homem como da mulher no nosso século. Esta coitada, até a minha adolescência, esmagava o corpo entre espartilhos e barbatanas de cintas ferozes. Era preciso tirar dela os últimos traços do natural. Nada de canelas à mostra, nem braços, nem começos saltitantes de seios. Tudo isso era o arsenal do demônio que atravancava o nosso celestial destino. Esmagada em seu espírito, como em sua carne, espirrava dela uma mitra de cabelos muitas vezes postiços sobre os rostos lívidos que ignoravam o baton e o rouge. Isso fazia a mola do desrecalque das noites de núpcias, de onde muitas vezes as recém-casadas saíam de maca, furadas de todos os lados pela potência pratiarcal em desespero.
O bordel passou a ser um ideal para a mocidade de meu tempo. Das pensões, escapando à tirania das caftinas, saíram inúmeras senhoras da alta sociedade, pois as profissionais do amor sabiam prender muito mais os homens do que as sisudas sinhãs da reza e da tradição.
Casadas, as mulheres transbordavam de gordura em largas matinês, o que fazia os maridos, saudosos de carne muscular e limpa, voltarem aos bordéis. Uma vida de simulação ignóbil, abençoada e retida por padres e confessores, recobria o tumulto das reivindicações naturais que não raro estalavam em dramas crus. Um pai matava a filha por que esta amara um homem fora de sua condição.
Foi Isadora Duncan quem com seus pés nus pisou pela primeira vez a terra que, atrás de seu exemplo, se desnudaria.
O esporte contribui imenso para liquidar com os homens de bigodeira e punhos postiços e as mulheres lacradas, vespas cloróticas que muitas vezes se recusavam dramaticamente a dormir com os maridos, pois não sabiam do que se tratava.
Ser bem educado era fugir da vida. As mulheres não podiam sequer revelar a sexualidade natural que todas têm. Eram logo putas."
(Oswald de Andrade, Um Homem Sem Profissão, sob as ordens da mamãe)

domingo, outubro 17, 2010

rio para professoras II

um lindo poema de Tatiana Pequeno
(porque todo o dia é dia do professor!)


RIO PARA PROFESSORAS II

E levanto a voz em tom ameaçador
de desorganizar vidas supondo que
o calor atenue o ímpeto das desmedidas
para um sinal sonoro de escola superar
a fala
enquanto saio correndo pelo entorno da baía
a vergar o corpo de cal, suor e chuva
porque também chove e porque também os olhos
são graves de tarefas, plenos de ataques a crediários,
encostas, ementas, trens e teorias.
No largo da carioca o almoço é um enxame sem favos
a rapidez é desonesta feito a bondade infinita das dicas para
cursos preparatórios de língua portuguesa e madarim.
Não falar
de si e da incompreensão do suicídio de ian curtis ou dever chorar
o intervalo da tarde somente minutos antes da plenitude dos remédios
atravessando em andor para tantas eras de raridade amparo
provimento, que dormir em vidros de coletivo parece conforto mítico.
E se não bastasse a fé de percorrer três cidades durante um dia, eu
diria que o afago inexiste nas trincheiras e mais: há todos os outros dias
que não segunda-feira
de pé quatro e vinte e cinco da manhã
em cozinha a demandar reparos de eletricidade
e encanamento inaugurando a língua com fervor
e doçura de cafeína preparada então para
desvirginar o primeiro metrô do dia
num vagão só para mulheres ferozes
de cansaço já nas primeiras horas matutinas.
E a pavuna me receberá resplandecente, no cheiro
de fritura e criolina em desajuste
com o volume e o fulgor das frutas
irrompendo o mundo para apaziguar
as dores orfãs e domésticas dos meus pés
irreparáveis e contínuos para asfalto e infantaria.
Voltar significava acúmulo, pétala soltando
a condição de rio em nome de uma voz alterada
grave e enorme como a poeira de quem aguarda
transporte alternativo na linha do trem nos centros
das cidades da baixada. E se volto à condição de
aprender, é grande o impedimento de falar para um
homem e para a disputa cruel das crianças: posso dar
o peito do poema a elas e esperar que sejam
nutridas pela falsidade insustentável de outros
desconfortos, mas que tragam a mim os alfinetes
das insígnias que forjarão a narrativa de suas
tragédias encenadas no dispositivo
insólito que é o real. Era um sonho saber
o que fazer disso,
saber cruzar histórias díspares e iguais
sem corromper o medo ou sobrepujar a ética
mas parece que ultimamente pouco
importa
o quanto sabotamos as próprias guerras
e o que fazemos solitários depois da
trigésima gestação de risco, porque os
pais chegam abruptos e também eu
assino termos de condenação e julgamento
prometendo, no que resta para o mundo,
não mais interceder no que é humano e
esquecer por definitivo os desdobramentos
dos rios das palavras e do amor sobre a terra.

sábado, outubro 16, 2010

flores no vaso



domingo, outubro 03, 2010

poema de amor

vou em sua direção
como nau em alto mar
veloz
vento revolto nas velas

vou em sua direção
como o gavião em busca da presa
e não sei quem é o gavião
quem é a presa

às vezes, vou em sua direção
como um carro desgovernado em direção ao poste

vou em sua direção
como a boca da puta em direção ao pau meio mole do cliente
ou como o pau meio mole do cliente em direção à boca da puta

vou em sua direção como vai o amor
disperso em todos os olhares

vou
porque à sua volta borbulham mundos
e pequenas e frágeis substâncias
que arriscam se quebrar a qualquer momento

vou em sua direção
como o espírito animal retorna
no ritual do xamã

vou como vão os deuses
em direção a tudo que é belo
a todo deleite

vou como o filósofo
em direção ao seu derradeiro filosofema

quarta-feira, setembro 22, 2010

o amor de muito

é quando você se depara com um cabra ou uma cabra porreta: você pode sentir-se idiotamente diminuido ou alegremente entusiasmado... o porquê não importa muito. O blog do Xico Sá é o que há!

http://carapuceiro.zip.net/

sexta-feira, setembro 10, 2010

viva o amor




sábias palavras de uma amiga querida!

« amor por alguém é alegria, sinônimo de potência aumentada!!!
desejo de vida, florecimento do mundo!
é também alegria passiva... às vezes imaginamos que esta expansão de forças e belezas tem causa externa, identificável: uma pessoamada.
o corpo vibra e festeja em sua presença
se contagia em miradas que fazem do mundo uma lindezura
composição de corpos-mentes que é sinfonia maravilhosa,
embora a força dessa experiência possa muitas vezes abrigar alguns perigos...
perigo de não chegar a compreender que esta força embelezante está no que se junta das duas potências (e não nos super-poderes de uma delas).
talvez, em parte, tanto festejo no corpo e na alma ocorra porque cada janelinha afetiva se escancara, com fome de mais vida, desejo de novas paisagens que despontam...
celebrar intensamente com a sabedoria de que este presente do acaso é feito de puro encontro, conjunção incrível de momentos e jeitos múltiplos, sem ser sequestrado pela ilusão de que o fora o provoca sozinho, é caminho de felicidade.

viva o amor!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! »

segunda-feira, julho 19, 2010

pensamento próprio

"é quase impossível pensar alguma coisa interessante e nova: sim, tudo já foi dito. Mas é essencial dizer as coisas importantes novamente, porque as pessoas delas se esquecem." Eu havia escrito alguma coisa parecida com isso, há tempos atrás, achando que estava dizendo algo interessante e original, até encontrar esse mesmo pensamento num fragmento de Paul Valery... É realmente impossível ser original! Mas não deixa de ser uma maravilha poder ser tão original quanto um Paul Valery.
Seria preciso acrescentar, talvez, uma cláusula de modéstia, para não dar a impressão de que o que importa realmente não é a idéia em si mesma, mas o desejo de reconhecimento, o ego de quem acha que merece ser reconhecido (e admirado e respeitado) por ter escrito alguma coisa realmente original? Mas o que seria uma "idéia em si mesma"?

domingo, julho 18, 2010

porque eu não gosto do Gullar...

retomo esse espaço, depois de um bom tempo ocioso. Tem uma ou outra coisa aqui que acho besta, sem pé nem cabeça. Como não tenho disciplina nem tempo suficiente para gerir o blog de modo mais inteligente, acabo sucumbindo à prática de postagens aleatórias, de pequenos pensamentos que são mais a marca de sua própria precariedade do que a promessa de qualquer coisa, Tudo bem, você pode dizer que a vida é parecida. O fato é que o desejo de expressar um pensamento, compartilhar uma idéia (uma imagem, um som, etc.) supõe a crença em ser mais a promessa de alguma coisa do que mera contribuição precária ao barulho que já existe... Então, abro o jornal e encontro o texto do Ferreira Gullar, e me lembro de alguns amigos (poucos, é verdade) que o acham genial... Ok, ele tem uns poemas bonitos, é um cara importante para a cultura brasileira, comunista histórico, etc (e, como dizia o Planeta Diário, ele é um gato!). Mas há tempos que, até onde minha miopia de quatro graus me permite enxergar, ele transformou-se num dos maiores representantes de uma esquerda reacionária infeliz, na política e na arte, com sua santa cruzada contra as vanguardas. Nunca perco tempo com discutir política em baixo nível, mas me ocorreu que seria bom justificar, para esses quatro ou cinco amigos que adoram o Gullar, as razões do meu desgosto. Então, hoje, no jornal, eu leio: "O caso extremo do experimentalismo na literatura foi o «Finnegans Wake». de James Joyce. Felizmente, a literatura de ficção não o tomou com exemplo a seguir, como as artes plásticas fizeram com o urinol de Marcel Duchamp. Se isso houvesse ocorrido, não teríamos hoje as obras de Borges, Faulkner, Clarice Lispector etc. Sem exagero, a literatura ter-se-ia tornado indecifrável e ilegível" (Folha, 18 de julho de 2010). Francamente, que tipo de "argumento" é esse? Em primeiro lugar, ele pressupõe que as artes sempre obedecem a um único padrão, tomando um exemplo a seguir. Em seguida, nos faz deduzir que, por terem "seguido o exemplo" do urinol de Duchamp, as artes plásticas tornaram-se indecifráveis e ilegíveis. Quanta bobagem!